Missa da Meia-Noite: O novo terror de Mike Flanagan
Missa da Meia-Noite traz à tona que, no terror, nem sempre o ser sobrenatural é o maior dos problemas.
Lançado no dia 24 de setembro, Missa da Meia-Noite é a nova minissérie da Netflix. Sob direção e autoria de um dos maiores nomes do terror moderno, Mike Flanagan, a minissérie de 7 episódios, segundo o diretor, é um de seus projetos mais pessoais. Trazendo em sua bagagem sucessos como A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly, ambas séries antagônicas da Netflix, e os filmes Hush, Jogo Perigoso e Doutor Sono.
Qualquer fã de cinema e do universo do terror já conhecem Mike Flanagan e é seguro dizer que ele reservou seu espaço dentre os grandes nomes do cinema do terror moderno. Porém, será que Missa da Meia-Noite somou para esse legado?
A minissérie acompanha a população de uma ilha isolada, onde a religião desempenha um grande papel. A trama começa acompanhando Riley (Zach Gilford), que está retornando para a ilha, após passar um tempo preso por ter atropelado e matado uma mulher enquanto dirigia bêbado. A cena inicial do primeiro episódio mostra Riley rezando em frente ao corpo sem vida da jovem que acabou de atropelar, o que já estabelece o tom da série quanto a religião.
Com a volta de Riley, conhecemos os outros habitantes da ilha. Especialmente Erin, sua paixão de adolescência e, agora, amiga próxima. Erin é interpretada por Kate Siegel, figura presente em outros sucessos de Mike Flanagan, seu marido. Curiosamente, em Hush, filme dirigido por Flanagan e protagonizado por Siegel, o livro que a protagonista está escrevendo também se chama Midnight Mass (titulo original da minissérie). Esse foi um easter egg interessante que poucos captaram enquanto assistiam à minissérie.
Erin é figura importante na trama. Ela, uma personagem melancólica que está grávida no início da série e é atormentada pela memória de uma mãe abusiva, é muito julgada e atormentada pela real vilã da história: Bev Keane. A atuação da atriz Samantha Sloyan no papel de Bev é sensacional, porque a personagem é a epítome de insofrível, para dizer o mínimo. E não, eu não estou exagerando.
Fanática religiosa, Bev é quem recebe o padre Paul à ilha. O Padre é interpretado por Hamish Linklater, em uma atuação incrível de uma mente conturbada. Paul chega para, segundo ele, substituir temporariamente o padre John, que é quem já regia a igreja na ilha há anos. Paul, por ser jovem e carismático, conquista facilmente a confiança do clérigo na ilha, mas é perceptível que algo está errado, obviamente.
Depois de alguns episódios, nós acabamos descobrindo que, na verdade, Padre Paul e Padre John são a mesma pessoa. Padre John, ao sair viajando seguindo os passos de Cristo, encontrou uma figura em uma caverna que ele acreditava ser um anjo, por mais que qualquer pessoa que já assistiu Van Helsing e Nosferatu tenha percebido de primeira que aquilo está bem longe de ser angelical. Ao ser mordido pelo “anjo”, ele, que já era idoso, rejuvenesce, captura o tal anjo e leva de volta para a ilha para que todos possam ser abençoados como ele. Obviamente que foi uma péssima ideia.
Sobre a influência de Bev e do padre, a comunidade acaba sendo convencida de que milagres estão acontecendo ali, tendo como evidência o caso de Leeza (Annarah Cymone), uma adolescente paraplégica que volta a andar misteriosamente durante a eucaristia na missa. Outros milagres vão acontecendo, enfermos vão se curando e, por fim, a igreja tem a confiança da maioria dos católicos da ilha de que o Padre pode fazer milagres. E é claro que isso acaba mal.
De forma muito inteligente, os personagens mais velhos que viriam a rejuvenescer foram interpretados por atores mais novos, usando maquiagens que os faziam parecer mais velhos para que, quando chegasse a hora de rejuvenescerem, ainda houvesse uma semelhança, tornando o processo mais natural e gradativo, como o que aconteceu com Alex Essoe, atriz que interpretou Mildred Gunning na série, uma senhora idosa e debilitada que vem a rejuvenescer após tomar o sangue do “anjo” que apareceu para o padre.
Não só ela, mas toda a congregação da igreja que comungava durante a missa ingeriu o sangue do “anjo”, o que fez com que muitos dos problemas de saúde que tinham fossem sendo “curados”.
Antes que pudéssemos nos dar conta, chega a missa de Páscoa, que acontece à meia noite porque o padre não pode sair no sol sem entrar em combustão espontânea. A população quase toda da ilha comparece e o padre, Bev e mais alguns membros do clérigo decidem que todo mundo precisa virar vampiro ser abençoado, da mesma forma que o Padre foi! Claro, algumas pessoas se opõem, dentre eles o xerife Hassan (Rahul Kohli).
O xerife que, inclusive, é mulçumano e tem sua religião reprimida e desrespeitada em vários momentos, especialmente por Bev. Um ponto que alguns espectadores mulçumanos destacaram foi o cuidado e pesquisa que a série levou em conta ao tratar da religião. No momento em que Hassan explica sobre o Islã em uma reunião de pais, ele mostra de forma bastante clara que a concepção que outros religiosos têm do Islã é equivocada, e guiada por preconceitos e estereótipos.
Hassan, porém, comparece à missa para acompanhar o filho, Ali (Rahul Abburi). Ali, por sua vez, comparece à missa após ter sido manipulado por Bev, que impõe sua religião na escola da ilha, onde é professora juntamente com Erin. No fim das contas, muitos acabam sendo “abençoados”, num processo que consistem em tomar veneno de rato, morrer e retornar à vida como “anjo”. Os que não foram abençoados passam a ser perseguidos.
A mensagem da série é mais que clara. A forma como o fanatismo religioso é retratado deixa explícito o comentário de Flanagan sobre como a religião cega as pessoas. Claro, não é uma demonização da fé, afinal, o xerife e seu filho são mulçumanos e em nenhum momento isso é retratado como negativo, mesmo mostrando como os outros reagem de forma preconceituosa perante a fé do outro, sem falar no racismo que os dois sofrem. Mas a fé cega é o ponto central da narrativa, evidenciado no momento da missa onde as pessoas estão dispostas a se matarem com a promessa de ressuscitar, guiados apenas pelo que foi dito e mostrado pelo Padre.
Além da fé, a série fala bastante sobre vício. O vício em bebida não só de Riley, mas também de Joe (Robert Longstreet), que é quem causou Leeza a perder o movimento das pernas, e da mãe de Erin, que não aparece na série, mas constantemente é mencionada e, segundo a própria Erin, era uma mulher alcoólatra e narcisista. Há um foco nas reuniões de AA onde o Riley e o Padre conversam e é evidenciado o confronto de opiniões dos dois sobre religião.
Algo que precisa ser ressaltado é a atuação sensacional de Kate Siegel, como sempre, e como ela se encaixa muito bem à de Zach Gilford. A combinação dos dois personagens é muito síncrona, e os momentos de diálogo dos dois são muito intensos e bem escritos, um ponto alto da minissérie. Especialmente a conversa que os dois têm sobre o que acontece após a morte. Esse momento é um dos melhores da série, pois é capaz de te imergir dentro da cena, como se você estivesse sentado no sofá com os dois.
Outro ponto alto, é claro, é a cena em que Riley conta para Erin que ele foi contaminado, no barco, no meio da água. É uma cena tocante, intensa e com muito tom de encerramento. Quando o sol nasce e Riley entra em combustão na frente de Erin, a reação dela é um dos momentos mais intensos da série, e pode render algumas lágrimas.
E sobre os sustos? Afinal, é uma série de terror! Bom, como já é de costume de Mike Flanagan, ele não usa os famosos jumpscares como muleta. No decorrer da série, existem sim algumas cenas de susto baseada em surpresa, mas não são muitas, e o terror da trama não se baseia nisso, então não vá assistir esperando sair completamente apavorado.
Mike constitui o terror, o medo e o desconforto no decorrer das cenas, com a própria história e com os próprios personagens. O medo, principalmente, está em saber o quão reais são as pessoas que habitam a ilha e que, se você tirar o elemento sobrenatural, o quão realista aquela história fica, porque o mal real são as pessoas. Em especial, Bev e o Padre. O Padre, porém, não é uma figura tão ruim quanto Bev.
Claro, ele é o catalisador de todos os problemas que virão a ocorrer na ilha porque foi ele quem trouxe a criatura sedenta por sangue para lá, o que acarretará em quase todos os habitantes se transformando em cinzas no final. Porém, ele fez isso a partir do sentimento genuíno de que estava cumprindo um propósito de Deus para trazer a benção para a ilha.
Tanto que, depois de uma conversa com Mildred, sua paixão do passado com quem ele teve uma filha que ninguém sabe, ele entende que não está cumprindo tal propósito divino e abandona o exército de vampiros abençoados liderados por Bev. Eles, porém, não estando dispostos a desistir de sua missão (que é transformar o resto do mundo em vampiros), seguem com Bev.
Bev, por outro lado, é uma pessoa egoísta. Ela quer ser a favorita de Deus e, por isso, está disposta a passar por cima de qualquer um para alcançar esse objetivo. Além, é claro, de ser muito fria, a ponto de envenenar um cachorro só pra fazer o dono sofrer. Seu fanatismo é tamanho que ela decide queimar todas as casas da cidade para que os vampiros abençoados só possam se abrigar no Centro de Recreação da Igreja, que ela criou e organizou.
Todavia, quando esse Centro também é incendiado, pelo xerife, ela vê que sua decisão foi ridícula e que ela condenou todo mundo a morrer queimado quando o sol nascer. Ainda assim, depois que todos os contaminados aceitam seu fim, ela tenta se salvar sozinha. Claro que não funciona. E, depois de tudo que ela fez de ruim, é bem satisfatório ver ela virar cinzas.
No final da minissérie, Leeza e Warren observam a ilha ardendo em chamas ao que o sol nasce. Ao mesmo tempo, Leeza percebe que suas pernas estão perdendo a sensibilidade, dando a entender que, ao que a ilha queima e todos os abençoados morrem, o tal “anjo”, que foi severamente ferido por Erin enquanto ele a matava, também morreu, e Leeza provavelmente voltará a perder o movimento das pernas, o que a deixa aliviada.
Porém, Mike Flanagan explicou o que realmente significa: a quantidade de sangue de “anjo” no corpo da Leeza estava diminuindo, já que ela não tomava o sangue da comunhão a muito tempo, sendo assim, sua “benção” estava se esvaindo, o que pra ela foi um livramento. Mike disse que o paradeiro do “anjo”, que não é visto morrendo na série, ficou em aberto. Não sabemos se ele morre ou não pois, assim como o fanatismo religioso, ele não desaparece, e sempre acaba voltando de alguma forma.
Na série, o fanatismo religioso é um personagem à parte, assim como a religião em si. Ele é o que te causa arrepios e desconforto durante a série toda. Nem a criatura que o padre trouxe para a ilha é tão assustadora. Tanto que, durante toda a minissérie, este ser passa voando, aparece nas janelas, ataca pessoas, mata Erin no final e, ainda assim, dá pra considerá-lo apenas um coadjuvante. Porque nada é tão grotesco e aterrorizante do que a fé cega retratada na trama que é, por fim, o motivo da morte da ilha quase toda, já que sobrevivem apenas Leeza e Warren (Igby Rigney), irmão de Riley.
E é seguro dizer que é uma fé cega, porque mesmo diante de todos os sinais de que o Padre estava infectado por algo ruim, eles consideraram um milagre. Mesmo depois de Leeza ter voltado a andar do nada e a médica sugerir exames mais profundos para entender o que houve, seus pais religiosos decidiram “não questionar o milagre”. Mesmo quando o Padre os orienta a tomar veneno de rato, convulsionar até morrer, pois assim eles serão abençoados, muitos não questionam. E esse comportamento só se justifica por uma coisa: fé cega.
Outros tópicos envolvendo religião são mencionados, como: corrupção e desvio de dinheiro do dízimo (por parte de Bev, pra variar), quebra da castidade do Padre, já que ele tem uma filha com Mildred, entre outros detalhes. Além, é claro, das várias referências à bíblia. Bev, que é o próprio Wikipédia da bíblia, faz mais citações ao livro do que o próprio Padre. E ela faz uso dessas citações de uma forma que já estamos acostumados a ver: utilizando de citações para provar um ponto e ignorando o resto. Ela dá contexto próprio à bíblia para justificar suas ações e isso é algo mais que comum no nosso dia a dia.
O desfecho de toda a trama é bastante coerente, não é surpreendente pela história, já que é possível adivinhar que tudo terminaria de um jeito mais trágico, mas é de encher os olhos pela fotografia muito bem feita. Sem contar, é claro, nas emoções contidas especialmente na cena da morte de Erin, com um monólogo maravilhoso sobre a morte e, também, na cena final de Ari e seu pai Hassan, onde os dois, depois de muito discutirem sobre religião, morrem realizando sua última reza juntos, honrando sua religião. Essa foi de encher os olhos de lágrimas mesmo.
Na minha opinião, no quesito terror, não supera A Maldição da Residência Hill ou A Maldição da Mansão Bly, mas isso não quer dizer que seja ruim, pelo contrário. É uma minissérie bastante reflexiva, que nos faz questionar muita coisa e perceber muitos comportamentos comuns dentro de personagens fabricados. Ela mostra a figura bem clara de como a manipulação dentro da religião pode levar ao fim de uma comunidade inteira e como “boas ações” com o objetivo de abençoar todo mundo nem sempre são boas ações.
É seguro dizer que a minissérie é um retrato dos trabalhos de Flanagan. Os episódios são constituídos por longas cenas, algumas gravadas em plano-sequência, algo sensacional que já havíamos visto em A Maldição da Residência Hill e que não decepciona, além de monólogos e diálogos extensivos, mas cheios de conteúdo, a ponto que, em certos momentos, faz parecer que você está dentro da cena, participando do diálogo.
Para quem não gosta de séries com uma linha do tempo mais longa e lenta, e episódios mais parados em sua maior parte, talvez não goste muito de Missa da Meia-Noite, porque os momentos de ação não são muitos, e estão concentrados mais nos episódios finais. Porém, para quem se encontrou entretido por A Maldição da Mansão Bly, essa minissérie será um prato cheio.
Texto por Thais Moreira
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