
Ne Zha 2: a maior bilheteria de 2025 é tudo isso mesmo?
A resposta curta é sim. A animação chinesa traz uma narrativa densa em um formato leve e visualmente belíssimo, conseguindo trazer emoção, humor e crítica social sem subestimar seu público.
Ne Zha 2: O Renascer da Alma, dirigido por Yu Yang (conhecido como Jiaozi), é a continuação de uma das animações mais celebradas da China. Diferente do que ocorreu com o primeiro filme, exibido apenas no mercado chinês, é agora a sequência que carrega o título de fenômeno global. Lançado em janiero deste ano, o longa já arrecadou mais de 2 bilhões de dólares em bilheteria, ultrapassando produções hollywoodianas e se consolidando como a maior bilheteria mundial de 2025. No Brasil, o longa chega às salas em 25 de setembro com distribuição da A2 Filmes, oferecendo ao público uma rara oportunidade de assistir no cinema uma produção chinesa de tamanha relevância.
Na trama, baseada em um romance chinês do século 16, A Investidura dos Deuses, acompanhamos Ne Zha em sua jornada para consolidar-se como herói. Após os eventos do primeiro filme, as almas do protagonista e de seu amigo e aliado Ao Bing se salvam, mas seus corpos são despedaçados. Agora, os dois precisam da ajuda do Mestre Taiyi para reconstruir seus corpos por meio de de uma flor de lótus sagrada. Porém, antes que a transformação se complete, o corpo “provisório” de Ao Bing é destruído em um ataque arquitetado por Shen Gongbao. Para impedir que a alma de Ao Bing se dissipe, Taiyi a funde ao corpo de Ne Zha e os dois partem em uma missão para recriar um corpo estável para Ao Bing. Contudo, a partir daí surgem novos conflitos e Ne Zha precisa lidar com os inimigos que aparecem para desestabilizar o equilíbrio entre deuses e mortais, em meio a seus próprios conflitos internos de identidade e amadurecimento. Jiaozi conduz essa narrativa combinando ação, emoção e crítica social, compondo uma história que, mesmo fundamentada na mitologia, reflete questões muito contemporâneas sobre poder e transformação.

Um dos maiores méritos do longa está em seu roteiro. Ao contrário da tendência ocidental de reduzir a animação a narrativas de noventa minutos, sempre muito concentradas em cenas para “fazer a história andar”, Ne Zha 2 se permite durar 144 minutos sem soar excessivo. Esse tempo é utilizado para desenvolver não apenas os protagonistas, mas também personagens secundários que, em outra obra, teriam bem menos importância. Pequenos momentos cotidianos, diálogos e respiros narrativos constroem uma ligação emocional sólida entre espectador e personagens, fazendo com que a trama vá além de um simples espetáculo visual. A cada nova virada de roteiro, o filme surpreende com reviravoltas que dão frescor à narrativa, alimentando a sensação de que há sempre mais camadas a serem exploradas. O resultado é uma obra que, mesmo extensa, flui com naturalidade, sustentando a atenção do público até o último minuto.
Essa solidez narrativa encontra paralelo no esmero visual. A qualidade gráfica da animação é impressionante, desde a composição de cores até a fluidez dos movimentos. Cenas de batalha ganham destaque especial, com coreografias inspiradas nos tradicionais wuxia, o gênero chinês de artes marciais que valoriza a elegância e a poesia nos combates. É impossível não se impressionar com a escala dessas lutas, que envolvem montanhas, oceanos e criaturas míticas, criando um espetáculo de imersão que rivaliza e até supera o que se vê em grandes produções hollywoodianas. Os cenários, minuciosamente detalhados, transportam o público para um universo mágico que, ao mesmo tempo, mantém uma coerência estética e narrativa.

Se a técnica impressiona, o conteúdo não fica atrás. Ne Zha 2 mergulha profundamente na mitologia chinesa, trazendo para a tela figuras, símbolos e conceitos que podem não ser muito conhecidos no Ocidente. Essa riqueza cultural é apresentada sem didatismo, convidando o público a adentrar em tradições que ultrapassam a simples fantasia e carregam peso histórico e filosófico. Assim, para quem não conhece, a obra funciona como uma introdução à cosmovisão chinesa, ampliando o repertório cultural de quem assiste e mostrando que a animação pode ser uma poderosa ferramenta de troca cultural.
Essa imersão mitológica é reforçada pela trilha sonora, que incorpora instrumentos e cantos tradicionais para criar uma atmosfera autêntica, acentuando a identidade cultural do filme e tornando-o ainda mais distante de uma fórmula genérica. O humor surge como contraponto a essa densidade. Em alguns momentos pode parecer bobo, mas nunca destoa da proposta. Na verdade, a sensação de descolamento que pode ressoar em parte do público se deve muito mais ao peso das reflexões propostas pela obra, o que aumenta o contraste com um humor que já é utilizado em animações “menos densas”.

O ponto mais “problemático” de Ne Zha 2 nem é de fato uma questão do filme em si, mas sim a ausência do primeiro filme no mercado brasileiro. Como não houve exibição nacional nem disponibilidade em streaming, o público local chega à continuação sem a base necessária para compreender plenamente o contexto inicial. O resultado pode ser uma sensação de correria ou confusão nos primeiros minutos, quando o longa retoma rapidamente elementos já apresentados.
Essa lacuna escancara a dependência de nossas redes de cinema em relação a Hollywood, que raramente permitem que obras de fora do eixo Estados Unidos–Europa encontrem espaço. Mesmo com a bilheteria histórica, Ne Zha 2 terá uma distribuição reduzida no país, algo impensável se fosse uma produção estadunidense. O caso evidencia a urgência de ampliar o espaço de exibição para outras cinematografias, incluindo o próprio cinema nacional, já que a qualidade dessa obra demonstra que o mundo é muito maior do que o que chega pelas mãos dos grandes estúdios americanos.
Este é, inclusive, um dos pontos em que o longa encontra ressonância temática com a realidade. Ao narrar a luta de Ne Zha contra poderes estabelecidos, o filme introduz conceitos de revolução social e questionamento de hierarquias em uma linguagem acessível ao público infantil, sem jamais subestimá-lo. Trata-se de uma ousadia rara, sobretudo quando se observa a crise criativa que afeta estúdios como Disney e Pixar, cada vez mais reféns de repetições e fórmulas prontas. Ne Zha 2 surge como uma prova de que a animação pode ser espaço de experimentação, crítica e renovação, combinando espetáculo visual com profundidade narrativa.
Ao final, fica claro que a maior bilheteria de 2025 não é apenas um fenômeno comercial, mas também um marco artístico e cultural. Com roteiro bem estruturado, visuais deslumbrantes, mitologia instigante e coragem para tratar de temas complexos, Ne Zha 2: O Renascer da Alma mostra que a animação pode seguir caminhos alternativos, rompendo com a repetição de fórmulas e se juntando a produções recentes, como Flow e Homem-Aranha no Aranhaverso, que também ampliaram os horizontes do gênero. No Brasil, sua chegada não apenas oferece um espetáculo imperdível, mas também levanta uma discussão necessária sobre diversidade cultural nas telas.
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