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Por: Thais Moreira 15/12/2025
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A frágil masculinidade retratada em “Na Estranha Imagem Entre Nós”, de Leonardo Menegatto.

Uma profunda reflexão sobre a fragilidade da masculinidade.

 

Muito se fala sobre masculinidade frágil e a toxicidade dos padrões emocionais ensinados aos homens. É um tema muito relevante, claro, pois essa fragilidade costumeiramente se manifesta através de comportamentos agressivos, especialmente direcionados a mulheres e, muitas vezes, também a outros homens considerados menos “masculinos”. Mas, o que é a masculinidade, afinal de contas? E de onde vem a ideia de que há um “homem de verdade”?

No artigo Traficando con Hombres: La Antropología de la Masculinidad, o antropólogo especialista em masculinidades da Universidade Brown, dos Estados Unidos, Matthew Guttmann menciona que existem pelo menos quatro maneiras distintas de utilizar o conceito de masculinidade: por definição, é qualquer coisa que os homens pensam e fazem; é, também, tudo que os homens pensam e fazem para serem homens. Há, também, a ideia de que alguns homens, por natureza ou filiação, são considerados “mais homens” que outros homens. Por fim, Guttman enfatiza a importância central das relações masculino – feminino, de tal maneira que a masculinidade é qualquer instância que não esteja relacionada ao mundo feminino. 

Então, se o “ser homem” é pautado em tudo que se pode pensar ou fazer para se tornar um homem, bem como o afastamento de tudo do universo feminino, é possível afirmar que as características intrínsecas da masculinidade são, primariamente, subjetivas. Socialmente, é ensinado aos homens que a sensibilidade e a vulnerabilidade são características femininas e, portanto, sinais de fraqueza, já que mulheres são mais frágeis (e em instâncias mais machistas, completamente inferiores), e os homens precisam ser o contrário disso: fortes, firmes e sem demonstração de emoções “fracas”. Por fim, os homens que não se encaixam nesse padrão do “homem de verdade” são menos homens.

Esses conceitos se relacionam diretamente com a obra de Leonardo Menegatto. Lançado em 2025 pela editora Toma Aí um Poema, o livro Na Estranha Imagem entre Nós é um retrato da psique masculina em conflito. 

A história acompanha um homem que acaba de encerrar uma amizade com outro homem. Essa amizade, longa e profunda, foi encerrada de forma brusca, após o protagonista entender que o amigo em questão não era um homem de verdade e, assim, tornando-se um empecilho para que ele próprio se transforme em um “homem com H”. Sendo assim, ele descreve o encerramento da amizade como uma “saída à francesa”, denotando que não houve um encerramento propriamente dito, negando ao amigo a sinceridade que uma amizade de longa data costuma carecer.

Com esse encerramento, o protagonista se vê entrando em um espiral de despersonalização que dura cerca de um dia, começando com a interrupção de seu sono, pois o amigo aparecia como um “invasor” em sua mente, e terminando com uma total metamorfose estilo Franz Kafka. 

Muitas coisas chamam a atenção no livro de Menegatto, mas quero focar na reflexão interna do protagonista. O livro pode ser dividido em duas partes: pré-metamorfose e pós-metamorfose do protagonista, e se trata de um monólogo interno, em sua maior parte. 

A parte pré-metamorfose escancara o íntimo da mente de um homem perturbado pela ideia da masculinidade perfeita, em seu ápice. Obcecado pela ideia de ser um homem de verdade, o mais forte, o mais viril e o menos sensível, o protagonista denota seus anseios de se afastar o máximo de qualquer fragilidade, mesmo que isso faça com que ele se afaste de um amigo querido. Amigo esse que, em suas palavras, demanda muita manutenção da amizade e possui sensibilidade demais, associando-o ao comportamento feminino. Tanto que o protagonista chega a mencionar que esse amigo está tentando disputar espaço com sua namorada em sua vida.

A namorada, em suas breves aparições na história, mostra-se contrária à decisão do parceiro de se afastar do amigo, e percebe que ele está em conflito interno com essa decisão. É possível identificar de antemão que o protagonista considera esse amigo menos homem que ele, mas a decisão de encerrar a amizade causa nele um conflito que perdura toda a história. Quase como se ele soubesse que não tomou a escolha certa desde o momento em que a tomou. 

Um ponto interessante sobre o nosso protagonista é a sua soberba, sua necessidade de ser superior ao amigo, de “vê-lo de cima”, como ele mesmo diz. Ele desdenha da sensibilidade do amigo, frequentemente mencionando seus “olhos marejados” como grande sinal de fraqueza. Ele diminui as conquistas do amigo e não consegue vê-lo de igual para igual. Porém, esse desejo de grandeza não é direcionado apenas ao amigo, mas também à namorada.

Mesmo que de forma mais sutil, ele também a diminui. Especialmente quando a coloca em um lugar de proteção absoluta. O protagonista se entende como um guerreiro de primeira linha, um grande homem de pedra que defenderá seu reino, seu castelo e sua princesa indefesa. Mesmo que ela seja sua namorada, parceira de vida, ele ainda assim precisa se convencer de que dizer “eu te amo” não seria um sinal de fraqueza.

E esse constante convencimento interno é o que torna a narrativa do livro atraente. Não estamos apenas dentro da cabeça de um homem que quer ser o maior, estamos acompanhando o conflito de um homem que sente precisar ser o maior, mas que não entende realmente o porquê. 

Não é só essa necessidade de uma masculinidade perfeita que faz com que o protagonista entre em um espiral de despersonalização, é o constante conflito, a dúvida. E a dúvida só existe, porque ele sente. A forma como ele pensa e o que ele sente não se alinham, por isso o conflito. Ele deve ser o “homem com H”, deve proteger sua frágil namorada e deve se afastar dos homens “menos homem”. Ele deve, porque é isso que faz um homem forte. Mas é isso que ele quer?

Se esse é o certo a se fazer, por que ele continua se questionando? Ao acordar na manhã seguinte ao conflito que levou ao encerramento da amizade, ele não se reconhece. Se sente estranho, a namorada nota a diferença antes de sair e deixa-o sozinho com sua própria reflexão dos eventos do dia anterior.

Ele entende a metamorfose, primeiramente, como um rito de passagem. Ele acredita que fez tudo o que precisava para ser um homem de verdade, e agora é nisso que ele está se transformando. Ele se tornará um grande pássaro, enquanto o amigo permanecerá sendo uma barata, um pombo, um parasita. 

Porém, a metamorfose não trás o que ele espera. Ao se olhar no espelho e não ver seu próprio reflexo, nosso protagonista entende que, na verdade, ele não existe nessa carapuça de masculinidade e o amigo, a quem ele considerava imperfeito e tratou com indiferença a ponto de fazê-lo sentir invisível, na verdade é uma parte indivisível dele mesmo. O homem perfeito não existe, assim como ele mesmo deixa de existir ao tentar se transformar nessa ideia. O amigo não é um problema, um pombo, uma barata ou um parasita. O amigo é seu confidente, alguém que o viu crescer e que esteve nos principais momentos de sua vida. O amigo é um irmão.

E ele só consegue perceber isso ao se colocar, literalmente, no lugar do amigo. A grande metamorfose termina quando, após um banho, ele consegue ver o contorno de si mesmo no espelho e, ao ouvir a porta se abrindo anunciando o retorno de sua namorada, ele decide que é hora de se abrir para ela, contar o que sente. 

Menegatto representa de forma muito criativa as emoções desse protagonista. Ao utilizar do realismo fantástico para apresentar com literalidade conceitos ambíguos da reflexão, ele consegue evidenciar a jornada do protagonista em direção a desconstrução de um pensamento que ele nem sequer concorda. Em um diálogo interno profundo, o protagonista percebe gradativamente que, na verdade, ele não é um “homem com H” e o amigo não é menos homem. 

Na Estranha Imagem entre Nós utiliza com maestria o elemento da metamorfose como ferramenta de despersonalização, assim como feito por Kafka em A Metamorfose. Gregor Samsa, protagonista de Kafka, ao acordar no corpo de um inseto, percebe que seu valor não existe para sua família, além da condição monetária. Kafka nos leva a refletir: “quem somos nós quando não somos úteis?”. Já o protagonista de Menegatto levanta uma reflexão diferente, mas paralela: “Quem sou eu quando deixo de ser eu mesmo? E quem é o meu amigo, quando eu deixo de vê-lo?”. Numa inquietante viagem pela mente humana, este livro nos leva a enxergar o conflito da personalidade masculina muito além do reflexo. 

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