
O live-action de ‘Como Treinar o Seu Dragão’ é exatamente o que o público quer ver — e isso pode ser um pouco preocupante
Novo longa da Dreamworks replica exatamente o original e já vem gerando diversas reações positivas no público
Quando saí da sessão do live-action de Como Treinar o Seu Dragão confesso que fiquei na dúvida em relação ao que escrever sobre o filme. Isto porque as resenhas e críticas sobre essa história já foram feitas em 2010, quando a animação foi lançada, e como esse filme não tem nada de diferente do original, com exceção de alguns poucos segundos de cenas específicas (e obviamente, o elenco humano), fiquei me perguntando o que exatamente eu poderia falar sobre ele sem ser repetitiva.
Para não dizer que não tem nada de diferente, vale destacar os efeitos visuais do filme, que trouxeram o aspecto realista para os dragões, porém sem perder o carisma e a naturalidade dos movimentos, especialmente no protagonista Banguela, que permanece com o mesmo nível de fofura do original. Os efeitos práticos também merecem destaque, uma vez que os cenários foram quase todos construídos para o filme.
Para além disso, houve um certo aprofundamento na história do povo de Berk, nas motivações de Astrid, vivida por Nico Parker, e no drama de Melequento (Gabriel Howell), que tem uma relação conturbada com o pai. Mas fora isso, o filme é exatamente igual ao original, quase quadro a quadro, mesmas falas, mesmos ângulos, absolutamente igual.
Então é óbvio que o filme é bom, já que a animação é boa. O sucesso de público e crítica de Como Treinar o Seu Dragão (2010) é inquestionável e fruto do excelente trabalho de Dean Deblois, que retorna para assumir a direção do live-action, e de Chris Sanders, co-diretor também responsável pela criação de Lilo & Stitch (2002). Por estar inserida nesse novo contexto de remakes de obras clássicas da animação, fica muito claro que a produção decidiu apostar no seguro, até porque 15 anos é um tempo muito curto para se justificar que uma obra precise de alguma atualização.
Os resultados já estão aparecendo, com as primeiras impressões do público repletas de elogios pela fidelidade ao original e exaltando a nostalgia. Realmente não tem o que falar. E isso, pelo menos para mim, é um problema. Por isso escrevo esse texto em primeira pessoa, porque decidi não fazer uma resenha propriamente dita de Como Treinar o Seu Dragão live-action, mas uma reflexão (e um desabafo) sobre o que ele pode significar para esse momento dos grandes estúdios de animação e para nós, fãs dessa linguagem.
Se é bom, qual é o problema?

Quem for ao cinema já sabe o que vai assistir. Se gosta da animação, vai gostar do filme, não tem erro. E foi meu caso, realmente gostei do filme, porque amo a animação, mas não pude me livrar de um certo incômodo que permaneceu comigo conforme a sessão passava e eu via o rumo que tudo estava tomando. Não pelo filme em si, mas por todo o cenário que se desenha em relação às animações hollywoodianas.
Dito isso, acho importante dar um pouco de contexto. Eu fui uma criança nos anos 90 e uma adolescente nos anos 2000. Isso significa que eu cresci com o que considero as melhores animações já feitas na História. Não me refiro só à Disney, falo de Dreamworks, de Pixar, de Studio Ghibli e de diversos estúdios pequenos também. Literalmente todos os anos um novo filme excelente de animação era lançado.
E não estou usando esse adjetivo levianamente. A Bela e a Fera, Aladdin, O Rei Leão, O Corcunda de Notre Dame, Hércules, Mulan, Lilo & Stitch, A Nova Onda do Imperador, Irmão Urso, entre muitos outros só para falar de Disney. Enquanto isso a Pixar vinha com Toy Story, Vida de Inseto, Monstros S.A., Procurando Nemo… A Dreamworks nascia com Shrek e a Blue Sky vinha com Era do Gelo. Dá para ter uma noção de como éramos bem servidos de boas histórias?
Por isso para mim é um pouco doloroso ver que tudo isso se resumiu à entrega de versões em live-action. Acho interessante? Sim. Vou ver pela nostalgia? Com certeza. Fico empolgada ao ver os personagens da minha infância “ganhando vida”? Muito. Mas ainda assim, bate uma dorzinha no coração em não ter mais a chance de me apaixonar, de me deslumbrar por novas histórias e novos personagens. A verdade é que fiquei mal acostumada, crescendo com todos esses lançamentos, e agora a realidade é outra. Para se ter uma noção, a última vez que a Disney lançou uma coisa realmente boa que não fosse live-action nem continuação foi em 2016, com Zootopia e Moana. E isso já vai fazer 10 anos…
E não, não acho que eu deveria me desapegar das animações, pois para mim elas nunca foram “coisa de criança”. Gostava de animações na infância, gosto hoje sendo adulta e vou gostar até chegar na velhice, não tenho a menor dúvida.
E por que eu vim falar sobre isso justamente no lançamento de Como Treinar o Seu Dragão? Bom, ele é o último de uma sequência polêmica de lançamentos de live-actions, que representam três formas distintas de “adaptar” as animações clássicas. Primeiro Branca de Neve, que muda muita coisa do original de 1937 e desagradou bastante por conta disso e pela forma como foi executado; segundo Lilo & Stitch, que faz algumas mudanças pontuais, dividindo opiniões sobre essas mudanças mesmo que mantenha a mesma estrutura narrativa; e por último Como Treinar o Seu Dragão, que faz um copia e cola do original, seguindo justamente o caminho que os fãs da Disney queriam que ela seguisse com seus filmes.

Decidi trazer essa discussão agora porque de todos os live-actions lançados recentemente, Como Treinar o Seu Dragão foi o que mais me fez refletir sobre isso. E também porque, vendo a recepção de Branca de Neve e Lilo & Stitch, acredito que ele é o que mais vai agradar o público e o que mais representa o meu receio como fã de animação, o de ter cada vez menos acesso a novas e boas histórias.
Mas vale a pena investir em novas histórias?
Que conste que, com exceção talvez de Mogli, não acho que nenhum live-action consegue superar ou sequer se igualar às suas respectivas versões animadas no quesito qualidade, sendo ele totalmente igual ao filme original ou completamente diferente. Clássicos são clássicos por um motivo, por isso as mudanças, mesmo as boas, não tornam a nova obra melhor; e animações já são filmes de verdade, completos e suficientes sozinhos, o que torna desnecessário um remake totalmente igual só para ter atores reais em cena, e às vezes nem isso (estou falando de você, O Rei Leão de 2019). Esse movimento de live-actions pode até trazer algumas produções divertidas, mas se tirarmos a nostalgia da equação, não sobra nada. Nenhum deles, nem os melhores, se garantem sozinhos.
Por isso, mesmo gostando de alguns, eu realmente não encontro boas justificativas para a existência de live-actions que vieram antes e que ainda virão (Moana? Um filme de 2016? É sério isso?). Ainda assim, é isso que a indústria nos oferece, é o que tem pra hoje. Então se vamos lidar com histórias repetidas, ainda acho válido que se tente contá-las de uma outra forma. Evidentemente estou me referindo a mídias iguais, como animação e live-action, em que ambos são filmes. Para adaptações de livros, jogos e quadrinhos, por exemplo, o raciocínio é outro, justamente por serem mídias diferentes do cinema.
Nesse sentido, é preciso admitir que mesmo os live-actions que erraram muito, como Branca de Neve e Mulan, ainda tentaram trazer algo novo para um cenário marcado por tanta repetição. E particularmente, ainda prefiro ser apresentada a uma forma diferente de me conectar com a história do que a clara intenção de me fazer pagar mais de 50 reais num ingresso para ver a mesma coisa que eu posso ver em casa. Às vezes dá muito errado, como nos filmes citados, mas outras vezes, como em Aladdin ou Mogli, dá muito certo.
Obviamente, Como Treinar o Seu Dragão é muito melhor do que Branca de Neve ou Mulan, mas se o mérito disso é todo da animação, então por que assistir ao live-action em vez da animação? Sim, a intenção desses filmes é lucrar com a nostalgia do público, todo mundo sabe disso e ninguém nem tenta esconder, mas para além disso, qual o motivo? Essa pergunta é válida para todos os live-actions, mas acredito que por ser tão igual ao seu antecessor, que já é bastante recente, em Como Treinar o Seu Dragão essa falta de justificativa fica ainda mais evidente.

Você pode dizer que é para apresentar a história para uma nova geração, mas em 15 anos as crianças de hoje já não conseguem ver o original? Porque eu vi diversos filmes da Disney mais de 50 anos depois do lançamento e me apaixonei da mesma forma. E tenho certeza absoluta que Como Treinar o Seu Dragão (2010) já se enquadra perfeitamente na definição de “atemporal”. O mesmo argumento eu uso para a “atualização tecnológica”. A animação de Como Treinar o Seu Dragão é tecnicamente incrível. E mesmo se tiver falhas — que eu não tenho arcabouço técnico para perceber — ainda é belíssima, palpável e totalmente apaixonante.
Por isso, quando surge o live-action exatamente igual ao original e o público responde dizendo que é exatamente isso o que ele espera de um live-action, não consigo deixar de me perguntar: que mensagem isso passa para a indústria?
Se basta entregar algo exatamente igual ao que já foi feito, então por que se preocupar em trazer algo novo? Para que se esforçar para usar o mínimo de criatividade? Se basta refazer o que já existe e o público está feliz com isso, não há motivo para investir tempo e dinheiro em novas histórias. Faz muito mais sentido colocar na prateleira algo que você sabe que vai vender. E aí, quando todos os filmes ganharem suas versões live-action, o que sobra para nós, fãs de animação? Que histórias e que personagens a nova geração vai ter?
Só nos resta esperar pelo melhor
Mas enfim, quem sou eu para dizer o que o público deve ou não querer ver ou esperar de um live-action? Se Lilo & Stitch foi tão criticado por mudar algumas coisas e Como Treinar o Seu Dragão está sendo tão exaltado por não mudar nada, acredito que os grandes estúdios vão captar a mensagem e entregar o que a audiência espera cada vez mais.
Particularmente, só me resta torcer para que o barulho de Como Treinar o Seu Dragão live-action não seja tão maior do que o de Robô Selvagem, para que pelo menos a Dreamworks perceba que ainda vale a pena lançar algo novo e bom. Também posso torcer para que Elio seja muito bom e conquiste um grande público, como Divertida Mente fez, e resgate a magia da Pixar. Também posso agradecer ao Studio Ghibli que permanece completamente fora dessa onda. Além de esperar que estúdios menores e produções independentes consigam ganhar espaço em meio à reciclagem de Hollywood, para que tenhamos uma outra animação tão boa quanto Flow muito em breve.
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