Trilogia Comando Sul: horror cósmico para além do lovecraftiano
Bestseller, a trilogia Comando Sul apresenta um estilo narrativo que devolve o pavor existencial ao horror cósmico
Certa vez, quando criança, viajei com meus pais afim de acamparmos no litoral norte de São Paulo. Crescidos na tardia fase hippie brasileira dos anos oitenta, eles gostavam de armar barracas nas profundezas da mata atlântica da praia do Camburi. Eu passei minha semana explorando pequenas trilhas que se bifurcavam a partir do nosso acampamento debaixo de uma enorme mangueira índica.
Certa manhã, estava sentado ao pé da fogueira quando, de repente, um pequeno sapo saltou para fora da mata sendo perseguido por uma enorme serpente. Por mais que saltasse pela sua vida ele não tinha chance contra seu esguio e astuto predador. Eu não pude ver para onde foram, mas sabia que a serpente o havia capturado.
À noite, não consegui dormir pensando no ocorrido. Eu já tinha visto incontáveis cenas como essa, mas assim como os filmes da sessão da tarde os documentários sobre vida selvagem do Discovery Channel não passavam de ficção para mim. Ver aquela cena pessoalmente me deixou eufórico, assustado e admirado. Qualquer um que já tenha experimentado esse choque sabe o quão raro ele é. A natureza como acreditamos conhecer nada tem a ver com a natureza real. Nos dias de hoje todos os seus aspectos foram condensados, codificados e entregues a nós pelas vias de segunda mão das nossas telas RGB.
Dando nome aos bois – e árvores e solos e espécies – nós domamos a natureza e criamos uma paisagem segura à nossa visão antropocêntrica. Mas a verdade é que a natureza real, despida de construções humanas, ainda está lá não importa o quanto a moldamos em nossas cabeças. Ela vive independente e indiferente à nossa existência, e é tão assustadora, admirável e alienígena quanto as estrelas acima.
É canalizando esses sentimentos que o escritor norte-americano Jeff VanderMeer construiu sua obra bestseller, a trilogia Comando Sul. Na costa sul dos Estados Unidos, em uma pequena região conhecida por alguns como a Costa Esquecida, uma misteriosa barreira de luz e bruma se formou, expandindo a partir de um ponto desconhecido até cobrir a região que ficou conhecida como Área X. Em uma tentativa de identificar a origem dessa área semi impenetrável o Comando Sul, um órgão do governo, foi criado e encarregado de pesquisar a região.
Por meio das muitas expedições o Comando Sul recolhe dados confusos, informações processáveis e múltiplas frustrações. O que se sabe sobre a Área X é que a natureza dentro dela parece intocada e que aqueles que a atravessam raramente retornam os mesmos. Entre expedições que terminam em suicídio coletivo, agentes que retornam com câncer, tiroteios entre as equipes e outros acontecimentos estranhos o Comando Sul pena para descobrir a real identidade e intenções da Área X.
A saga é um delicioso mergulho no desconhecido fascinante e sombrio. O que é a Área X, quem ou o quê a colocou na Terra e como ela muda a mente e os corpos de quem a atravessa? Na busca de resolver essas questões o leitor deve seguir a historia dos personagens envolvidos com o Comando Sul em sua árdua tarefa. A trilogia é classificada como new weird e muito de sua narrativa se aproxima do horror cósmico, mas não da maneira esperada. A Área X não é o mesmo que os Grandes Antigos.
Apropriadamente cósmico
Horror cósmico é comumente definido como um gênero que se aproveita do medo do desconhecido e causa a sensação de pavor existencial. Ele se apoia na sensação de pequenez para com o resto do universo e da sensação de insignificância em frente à indiferença de seres muito mais velhos. O problema é que em sua ignorância e ódio, Lovecraft criou filtro visível em suas obras – que também é acidentalmente incorporado por outros escritores do gênero. Mesmo que sem intenção, seus monstros e entidades automaticamente adquirem uma essência de malignidade. É impossível se deparar com as entidades desformes, caricatos cultistas e homens peixe e não vê-los como fruto de algum mal palpável. Esse filtro – gerado pelos signos, pelo estilo narrativo e ambientação geral – atrapalha a concessão do pavor existencial, uma vez que não há indiferença se há malignidade.
VanderMeer, por outro lado, faz uso intencional de uma narrativa sem filtros, pura e distante de todo conceito pré codificado por mentes humanas. O autor até mesmo visitou 95% dos locais que descreve no livro, buscando representar a natureza selvagem real. O que VanderMeer faz, ao adotar essa narrativa, é gerar uma sensação digna de medo e incompreensão. A Área X não é uma entidade, ela é um lugar, um ser vivo, um conceito, uma coisa, um hiper objeto… Ela é verdadeiramente indiferente e não há nada mais aterrador do que algo que ameace sua vida sem que tenha uma face para encarar.
Mostrar ao invés de contar
Uma das principais maneiras com que o autor alcança esse efeito é utilizando de uma voz mais interessada na paisagem e nos ocorridos do que nos sentimentos internos dos personagens. Começando pelo seu primeiro livro da saga, Aniquilação, VanderMeer optou por narrar essa história em primeira pessoa, mas para manter seu projeto ele criou uma personagem digníssima desses conceitos.
Em Aniquilação, o leitor acompanha o ponto de vista da personagem conhecida como a Bióloga. Esposa de um dos membros da décima primeira expedição ela decide fazer parte da décima segunda, logo após o retorno de seu marido e a morte dele por câncer poucos dias depois. Diferente do seu protagonista usual a Bióloga é desprovida de uma empatia voltada para relações humanas e se conecta muito mais com a natureza e todos os seus aspectos. Através dos seus olhos curiosos e dedicados à conexão com a vida selvagem e biosferas é que o leitor realmente compreende a grandiosidade da entidade Área X.
No mais, a Bióloga ainda apresenta uma humanidade inerente e uma personalidade que não procura agradar nem pedir desculpas, tornando-a uma protagonista não usual e altamente interessante. Apaixonar-se por ela é fácil e é o mesmo que apaixonar-se pela narrativa.
Essa necessidade de excluir os filtros e códigos pré estabelecidos no comportamento humano em outras obras de ficção permanece e permeia também os dois títulos seguintes, Autoridade e Aceitação, que adotam diferentes pontos de vista, mas um único estilo narrativo. Através dessas características, personagens e acontecimentos se tornam mais significativos. Sentimentos se tornam ações, momentos são puramente marcados pelo seu conflito e personagens brilham sinceramente.
Lendo a saga, há momentos em que a vontade é de chorar, de fugir, de tremer de medo, de abraçar os personagens e torcer para que eles sobrevivam ou que mergulhem de cabeça no mistério e na beleza. E todos esses sentimentos são atingidos sem a necessidade de saber diretamente o que eles estão sentindo.
E quanto ao horror e o mistério? Bom, como dito, é impossível não temer algo que não tem face e há momentos dessa leitura onde os cinco sentidos são desafiados, o estomago contrai, os pelos arrepiam e acima de tudo, a existência por si só é questionada.
A trilogia Comando Sul é um verdadeiro seminário sobre show not tell (mostre, não conte), é uma excelente obra contemporânea que aborda temas sobre responsabilidade, cinismo, existencialismo e sobrevivência. Para os fãs de horror cósmico e ficção cientifica vale a pena conferir e fazer a sua própria expedição à misteriosa e admirável Área X.
Texto por: Aquiles Rodrigues
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