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Por: Redação Nerd Recomenda 15/07/2021
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Bo Burnham – Inside: capturando as angústias de uma geração

Muito mais do que um divertido especial de comédia gravado em casa e durante a pandemia, Bo Burnham: Inside pode fazer refletir, chorar e encontrar consolo na arte.

Ansiedade, depressão, crise existencial, frustração… Esses são conhecidos íntimos dos que permaneceram isolados durante a pandemia que já dura quase dois anos. Nesse período, lidar com esses sentimentos tem sido a mais desgastante tarefa forçada a essa geração de jovens adultos. Alguns descobriram como administrá-los, outros não resistiram, mas Bo Burnham, em particular, conseguiu transformá-los em arte, produzindo sozinho um especial que consegue ressoar com a experiência de todos nós, prisioneiros desse momento.

Inside é mais do que apenas um especial de comédia como outros já apresentados pelo comediante – como Make Happy, também produzido para a Netflix. É um verdadeiro documentário sobre o processo criativo, a luta contra transtornos mentais e a sobrevivência durante o isolamento social. E Burnham fez quase tudo sozinho, de dentro da sua casa, tendo escrito, dirigido, filmado, editado e composto todas as músicas. Com seis indicações ao Emmy, Inside compete com obras feitas por grandes estúdios e produções de grande investimento. Fazendo a comparação, fica claro o mérito do autor.

Fantásticas paródias musicais, criticas sociais, análises inteligentes e muito mais pode ser encontrado dentro do especial. Burnham, que já havia dirigido o filme Oitava Serie, utilizou de toda sua experiência e conhecimento artístico, para entregar uma verdadeira obra prima, cheia de significados visuais, ideias genuínas e muito sentimento. E a forma com que ele construiu uma história, que deixou de ser só sua para ser a de todos nós, é simplesmente genial.

O pesadelo que vivemos

Começando pela sua abordagem do mundo contemporâneo, Burnham contextualiza e prepara o espectador para uma verdadeira montanha russa – de quase só descidas, diga-se de passagem. A realidade de 2020 e 2021 é simplesmente um inferno. Não há porque recuar nessa declaração e ele sabe muito bem disso.

É certo fazer piadas em tempos como esse? Essa pergunta é respondida com uma noção de que ao menos se pode tentar. Dentro de casa, vendo o tempo passar e as coisas piorarem cada vez mais, todos sentem a vontade de fazer a diferença por menor que ela seja.

E nessa tentativa de fazer comédia, mesmo cercado de tragédia, Burnham expõe suas principais ideias e visões de mundo, a mais forte delas sendo a aversão ao capitalismo. Listando os inúmeros fatores que caracterizam o sistema, como opressão sistematizada, injustiça, questões raciais, imperialismo etc., ele lembra o quão o mundo está… Bem, fod*do. É simples assim.

A música How The World Works é que faz esse excelentíssimo resumo da realidade do mundo capitalista, construído sobre uma história conturbada de uma agressiva, expansiva e tribalista raça humana. E a critica ao capitalismo ainda segue para outras canções, sendo as mais icônicas Bezos I e Bezos II. Ambas falam sobre o capitalista dono da Amazon, Jeffrey Bezos, conhecido pelo seu agressivo modelo de negócio.

Cena de Inside, durante Bezos II

E não é nem necessário ser direto, ambas as músicas tratam Bezos com sarcasmo e terminam com um parabéns irônico. É uma crítica sutil que não precisa de explicação direta, até por que os números musicais que as antecedem já contextualizam muito bem, sendo esses, Unpaid Intern, que fala do absurdo do estágio não remunerado e Wellcome To The Internet.

As críticas fazem relembrar todos os fatores externos que diariamente Burnham e todos os demais isolados precisam considerar quando pensam no mundo ao seu redor. O mundo que está esperando do lado de fora enquanto permanecemos impotentes dentro de casa.

10 Best Performances In Bo Burnham: Inside | ScreenRant
Trecho de How The World Works. Nesse número musical que imita um programa infantil como Vila Sésamo, é um fantoche de meia quem denuncia os horrores do mundo contemporâneo.
Uma sensação estranha

O isolamento é sem duvida o tema mais proeminente em todo o especial, mas quando pareado à consciencia das calamidades no mundo exterior – os pequenos momentos em que vemos as noticias e lembramos do caos– ele cria um sentimento difícil de se traduzir em palavras. Em Inside, é possível observa-lo na forma de uma espiral descendente da saúde mental de Burnham.

Em um dos sketch cômicos que intercalam os números musicais, o comediante faz uma sátira aos vídeos mais famosos de gameplay. Nesse trecho, Burnham é o jogador e o jogo é sua vida, que se resume a levantar, chorar, trabalhar para se distrair e voltar para mais uma noite angustiante onde cai a fixa de que o tempo parece não passar. Essa rotina soa familiar? É claro que sim. Da mesma maneira também é possível se identificar com o trecho em que ele descreve a ansiedade de se ter de acordar e levantar da cama quando tudo que se espera para o dia é um ataque de pânico.

Ao longo do especial esses momentos ficam mais intensos e mais reconhecíveis e Burnham deteriora cada vez mais. Isolado, perguntando a si mesmo se vai terminar o especial e se faz sentido continuar a fazê-lo, o autor mergulha cada vez mais na sensação estranha que ele mesmo não descreve com exatidão. É um sentimento de impotência, irrelevância… É uma angustia única.

E esse sentimento pequeno cresce. Deixa de ser um sussurro e se torna um grito ensurdecedor, culminando num colapso seguido do clímax do especial. Sob luzes frias e uma projeção vertiginosa, Burnham canta All Eyes On Me, dando voz direta a esse sentimento semi-indescritível. O mundo já acabou, não adianta achar que vai ficar tudo bem ou que você vai fazer a diferença quando sair lá fora. Você não vai. Entendeu? Muito bom, agora volte para dentro.

Dores de parto

O sentimento que Inside capta ao reproduzir a experiência do isolamento e a desesperança desses tempos é sem duvida sua principal característica, mas há muito mais a ser analisado, principalmente se considerada a história da carreira de Bo Burnham.

Como ele confessa em All Eyes On Me, o comediante ficou 5 anos fora dos palcos. Seu hiato, provocado por ataques de pânico que aconteciam em meio às suas apresentações, estava para terminar finalmente em janeiro de 2020. É claro, nunca aconteceu. A pandemia surgiu e apesar de preparado para sair, ele foi forçado a ficar dentro de casa novamente.

E Inside é o projeto que se originou dessa frustração somada à toda experiência do isolamento severo da pandemia. Num formato metalinguístico, Bo faz autocríticas e comenta a todo momento sobre a sua angustia e seu dilema como autor, um que toda pessoa criativa conhece.

Ser autor, afinal, é equivalente a estar preparado para andar pelado na rua a todo momento. Toda criação é uma parte do criador. Uma que, assim que concluída e entregue, se torna do público também. O medo, a angústia e o apego são inevitáveis e é comum o processo criativo se tornar uma caminhada tortuosa.

Durante todo o especial, Bo se pergunta se irá concluir o trabalho até que, chegando no final, ele começa a se recusar a terminar. Porque uma vez entregue o projeto a vida segue e nada ele teria para continuar a se dedicar e se distrair da sensação estranha. Mais do que isso, ele demonstra o seu medo na canção I Don’t Wanna Know. É obvio que ele não quer saber, receber feedback do público é confirmar que o projeto se concluiu e não está mais nas suas mãos. Seu magnum opus não é mais só seu e agora todos podem enxergar uma parte muito íntima sua.

E Bo definitivamente colocou muito dos seus sentimentos em Inside, criando uma obra de arte admirável em incontáveis aspectos. Palavras e mais palavras poderiam ser usadas para descrever a sua genialidade.

O redator que vos fala poderia escrever sobre como White Woman’s Instagram parece uma crítica à superficialidade, mas na verdade é uma observação empática que demonstra que existe uma vida real e tangível por trás da fachada das redes sociais. Poderia escrever sobre como a caracterização da Internet como vilã, feita em Wellcome To The Internet, é mais do que adequada e inteligentemente transmitida através do seu arranjo caótico e sobrecarregado de informações.

No enquadramento de White Woman’s Instagram, Burnham reproduz o formato da plataforma. O enquadramento só fica completo no trecho em que a personagem interpretada por ele fala da sua mãe falecida.

Poderia escrever muitas coisas, essa resenha sequer tocou a superfície, mas mesmo que Bo estivesse lendo ele não se sentiria confortável. Afinal, falar de Inside é falar de uma parte íntima dele. É assim com todo artista sincero e seus bebês. Eles só reconhecem sua obra no silêncio e na contemplação.

E é assim que Inside termina. O projeto está concluído e Bo tem de sair, para encarar a vida sem ele. As últimas cenas dão a entender que seu instinto imediato é voltar para dentro, com uma recém adquirida fobia da vida, mas um último take, onde Bo se encontra no mesmo quarto assistindo o resultado de todo o seu trabalho, apresenta um sorriso. Por que no final tudo vale a pena.

E a sensação? Vai parar qualquer dia desses.

*Texto por: Aquiles Rodrigues


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