
Circe, de Madeline Miller – releitura moderna da trajetória da feiticeira retratada na Odisseia de Homero
“Feiticeira. Bruxa. Entre o castigo dos Deuses e o amor dos homens”
Circe, é um livro de mitologia, escrito por Madeline Miller (mesma autora de “A Canção de Aquiles”). Esta versão traz o mito da poderosa feiticeira recontado de forma mais moderna, do ponto de vista da própria Circe, sua relação com os demais deuses e titãs, seu castigo, seus encontros com os mortais e muito mais.
Filha do titã Hélio, divindade do sol e da ninfa Perseis, Circe era a mais velha de seus irmãos, mas também a mais “rejeitada” por sua família divina por não herdar nenhum traço de divindade do Deus do sol, seja beleza ou força (a ovelha negra da família). Dessa forma, sendo chacota do mundo divino, é no mundo dos homens que ela busca algum conforto e descobre seus poderes de feiticeira, coisa que, até então, só ela e seus irmãos conseguem realizar.
E são esses mesmos poderes, que ela nem percebera ter, que fizeram com que ela admitisse um erro que cometeu e recebesse uma punição por parte de dos deuses do Olimpo, ser exilada numa ilha deserta pela eternidade. Mal sabiam eles que essa punição foi mais como um presente para a pobre coitada que era sempre o motivo de chacota da galera nos salões do Olimpo.
“É comum dizer que as mulheres são criaturas delicadas, flores, ovos, qualquer coisa que pode ser esmagada em um momento de descuido. Se alguma vez acreditei nisso, não acredito mais.”
Na ilha de Eana, exílio de Circe, a jovem começou a se dedicar ao estudo das ervas e poções, tornando-se uma verdadeira bruxa. Como nunca se relacionou tanto com seu lado divino, não tinha problemas em sujar suas próprias mãos para cuidar da terra e criar animais, coisa que para os demais deuses seria incabível, uma heresia. Ficava só a maioria do tempo, exceto por algumas visitas ocasionais de Hermes, o Deus dos mensageiros e amante nas horas vagas (nada sério, só físico mesmo).

Mas não pense que a vida dela virou uma várzea, provável que um milênio assim tenha realmente sido ruim para ela, mas, para nós, a passagem de tempo é mais rápida e acompanhamos vários eventos. A saída dela da ilha, para ajudar sua irmã no parto (desse parto é que temos o minotauro, outro mito), onde ela conheceu Dédalo e seu filho Ícaro, além da sobrinha, Ariadne, parte do mito do minotauro.
Nesse ponto da vida, creio que ela já desenvolveu um certo respeito pelos mortais, por seguirem em frente, apesar de tudo contra eles, às vezes os próprios deuses por seus motivos egoístas. Mas nada a preparou para o que passou a sentir, depois que a própria se torna mãe, onde ela percebe como a vida humana é frágil diante da imensidão do mundo e tenta de tudo para proteger seu filho (quem é o pai? Quais perigos ele enfrentará? Leia o livro e saberá).
Tudo muito diferente da Odisseia de Homero, onde a feiticeira é meramente um breve capítulo na história de Odisseu, mais uma vilã que tenta transformar seus homens em feras por motivo nenhum, sendo subjugada pelo herói e forçada a fazer seus gostos. Típico de homem.
“Humilhar mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas. Como se não pudesse haver uma história se não rastejarmos e choramingarmos.”
Claro, aqui ela também transforma homens em feras (porcos, mais especificamente), mas com motivo, na primeira vez que ela ofereceu toda sua hospitalidade para marinheiros cansados de viagem, eles só brilharam os olhos para as riquezas dela e, após constatarem que ela não tinha nenhum homem responsável em casa, abusaram dela. Depois disso, ela usou esse fator como teste para seus convidados, os que parecessem levemente interessados em seus bens, virariam porcos, os que respeitassem os limites, ganhavam apenas a boa hospitalidade dela.
Os soldados de Odisseu foram apenas mais um grupo de homens interesseiros que mereciam virar porcos, mas Odisseu conversou com Circe, conseguiu o perdão dela e a tratou como igual, tanto que permaneceu meses na ilha e tornou-se um dos amantes dela, contando tudo sobre suas aventuras e sua família.

A nova versão do mito de Circe foi muito bem recebida pela crítica e recebeu o anúncio de que ganhará uma minissérie, de 8 episódios, adaptada pela HBOMax, por enquanto sem datas de início das gravações, estreia, etc.
Ao seu próprio modo, Circe faz questionar de que vale a imortalidade se na realidade os deuses nunca estiveram vivos para sentirem tudo o que os mortais sentem, para sofrerem com as perdas de seus entes queridos, sendo que eles não se importam com os outros, apenas com eles mesmos. Eles só veem os humanos como criaturas pobres e ignorantes, que devem adorá-los.
“Eu pensei uma vez que os deuses são o oposto da morte, mas agora vejo que eles estão mais mortos do que qualquer coisa, pois são imutáveis e não podem segurar nada em suas mãos.”
Nessa falta de sentimentos, fica também registrado o desprezo de sua própria família, mostrando que tudo que ela sempre quis foi ter aprovação do pai, o deus sol, fazendo tudo que ele quisesse, sendo a filha que não dá trabalho, já que ela não poderia ser perfeita, mas nada nunca é suficiente e, no final, ela percebe que essa aprovação nunca viria porque ele não seu importa. Inclusive, a forma de respeito que ele impõe, pelo medo, por meio de ameaças, é muito tóxica, lembrando a passagem que, na única vez que ela respondeu ele, o cara praticamente queimou ela viva (ele é o sol, ele pode fazer isso e ela é imortal, então só sofreu muito com as dores).
Como disse mais acima, foi em seu exílio que ela encontrou a libertação da ameaça constante que era seu pai, foi lá que ela se descobriu uma bruxa exemplar, se tornou mulher, que percebeu e aceitou a própria beleza, uma vez que sempre era comparada com outras ninfas e sempre tida como feia, e foi lá que ela se permitiu ser apenas Circe (o final do livro faz essa frase aqui ter mais sentido ainda).
Por: Letícia Vargas
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