
Após polêmicas com Karla Sofía Gascón, quais as reais chances de Fernanda Torres e ‘Ainda Estou Aqui’ no Oscar?
O engajamento brasileiro pode ter seu lado positivo, mas também pode acabar prejudicando a campanha
A menos que você more em uma caverna, já sabe que o longa brasileiro Ainda Estou Aqui está concorrendo a três categorias no Oscar, sendo elas a de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Atriz, para Fernanda Torres, e Melhor Filme. Você também já deve saber que o principal concorrente do filme de Walter Salles, Emilia Pérez, recebeu 13 indicações e desbancou não apenas a produção brasileira em Melhor Filme de Língua Não Inglesa, mas também Wicked como melhor musical no Globo de Ouro. E também não precisa estar totalmente fechado na bolha cinéfila para saber da polêmica envolvendo Karla Sofía Gascón, protagonista de Emilia Pérez e primeira mulher trans a concorrer ao prêmio de Melhor Atriz.
Um pouco de contexto: tudo começou no Globo de Ouro. Os brasileiros vibraram ao ver Fernanda Torres “totalmente premiada” como Melhor Atriz em Filme de Drama, mas também sentiram o gosto amargo de ver seu principal concorrente levando quatro prêmios para casa, entre eles o de Melhor Filme em Língua Não Inglesa, pelo qual competia diretamente com Ainda Estou Aqui. O sucesso do longa dirigido pelo francês Jacques Audiard foi assunto no mundo todo. E foi aí que as críticas sobre o filme começaram a ganhar ainda mais força e repercussão.
A essa altura você já deve saber o texto de cor: um filme que se passa no México, mas foi dirigido por um francês, com apenas uma atriz mexicana, sendo o elenco principal composto por atrizes da Europa e dos Estados Unidos, além de ser todo filmado na França.
Para piorar a situação, o diretor deu algumas declarações infelizes (para dizer o mínimo), afirmando que a língua espanhola é de “pobres e imigrantes” e que ele “não precisou” estudar sobre o México para fazer o filme, pois o pouco que sabia sobre o país “já era suficiente”. A diretora de elenco não melhorou a situação ao afirmar que “não encontrou” atores latinos aptos para os papéis. E daí foi ladeira abaixo.
Mexicanos e brasileiros, principalmente, caíram em peso em cima do filme. As críticas na web só cresceram, ao ponto de gerar uma disparidade absurda no Rotten Tomatoes entre a quantidade de avaliações positivas da crítica (73%) e do público (18%). As 13 indicações ao Oscar colocaram Emilia Pérez ainda mais sob os holofotes. O mesmo ocorreu com Ainda Estou Aqui, um filme também político, que também fala sobre uma população latina (mas com elenco, direção e filmagem brasileiras) e cuja popularidade crescia cada vez mais após sua estreia nos cinemas americanos. A situação toda acabou gerando uma polarização entre as produções, especialmente para o público latino.
Em resumo, as coisas foram de 0 a 100 muito rápido. Num dia, Karla Sofía Gascón pede ajuda de Fernanda Torres com os ataques que começou a receber nas redes sociais, no outro, a brasileira grava um vídeo atendendo ao pedido e orientando os brasileiros a não “alimentar ódios”. Logo em seguida, sem mencionar o vídeo da colega, Gascón dá uma entrevista para a Folha de S. Paulo acusando a equipe de Fernanda Torres de falar mal dela e de Emilia Pérez. “Isso fala mais deles e de seu filme do que do meu”, afirmou a espanhola. Por fim, diversos tweets de Karla Sofía Gascón, publicados principalmente de 2019 a 2021, vieram à tona, expondo falas preconceituosas da artista.
A protagonista de Emilia Pérez viu suas publicações saírem na revista Variety, entre elas comentários xenofóbicos contra chineses durante a pandemia de Covid-19, contra imigrantes muçulmanos e contra a religião islâmica, além de críticas a George Floyd e ao movimento Black Lives Matter e até contra a diversidade que vinha crescendo no Oscar. Nem mesmo celebridades, como Adele, Miley Cyrus, o grupo BTS e sua colega de elenco Selena Gomez escaparam dos comentários ácidos.
O resultado disso foi um cancelamento pesado. Karla Sofía Gascón desativou seu perfil no X e pediu desculpas por suas declarações, mas fez questão de dizer que teve sua “existência manchada” por “mentiras ou coisas tiradas de contexto”, ressaltando que não é uma pessoa racista nem apoia opressão de raças ou povos. “Por mais que sua mensagem seja uma, se não usar as palavras corretas, ela se transforma em outra”, disse a atriz.
Após toda essa polêmica, especialistas apontaram que as chances de Emilia Pérez no Oscar diminuíram bastante em todas as categorias, uma vez que Gascón se tornou o rosto principal da campanha (e chegou a comparar as críticas a ela e ao filme com o holocausto). Alguns até pontuaram que ela teria descumprido uma regra da premiação ao “falar mal” de Fernanda Torres, o que a Academia desmentiu — embora também tenha deixado de seguir a atriz no Instagram.
Sabemos que em uma campanha para uma premiação como o Oscar, tudo é extremamente calculado por diversos players que atuam nos bastidores montando a estratégia de marketing e todas as ações envolvendo os filmes concorrentes e seus atores e diretores. Especialmente em relação às declarações sobre Fernanda Torres, não se sabe o que de fato foi fruto dessa estratégia e o que realmente foi intenção apenas de Karla Sofía Gascón. O fato é que o prêmio de Torres no Globo de Ouro, a nomeação de Ainda Estou Aqui em Melhor Filme, a maior categoria do Oscar, e o sucesso que o longa brasileiro começou a fazer nos Estados Unidos chamaram atenção e surpreenderam público e mídia.

O problema é que, embora a bomba tenha caído no colo de Emilia Pérez, é inegável que Fernanda Torres e Ainda Estou Aqui tiveram seus nomes envolvidos nessa polêmica. Note-se que Gascón não pediu ajuda nem fez acusações contra as equipes de nenhuma outra concorrente. Até porque, segundo a espanhola, os ataques que recebia nas redes sociais vieram dos torcedores de Fernanda, que exaltavam a brasileira e diziam coisas como “Fernanda Torres é melhor” para criticar o trabalho de Karla.
E querendo ou não, isso acaba fortalecendo ainda mais a campanha de Demi Moore, que já era a favorita ao prêmio de Melhor Atriz por seu trabalho em A Substância. Além de ter a “nacionalidade certa”, a norte-americana já tem uma longa carreira em Hollywood e somente agora está recebendo reconhecimento da crítica pela qualidade de sua atuação, como deixou claro em seu discurso no Globo de Ouro. Sem ingenuidade, Demi Moore merece sim esse prêmio, mas não é apenas por esse motivo que ela deve levar a estatueta para casa. É, principalmente, por seu “enredo” fora das telas, que vende muito mais para a Academia.

Premiar Fernanda Torres, por um filme brasileiro falado em Português, já seria uma realidade difícil mesmo sem as polêmicas com Karla Sofía Gascón. Ainda que Fernanda tenha se tornado a segunda favorita ao prêmio, a Academia não vai querer “tomar um lado” na briga. A atriz brasileira fez bem em não comentar sobre as polêmicas e focar a campanha completamente em seu filme (o que era para Gascón ter feito também), mas ainda assim, o que fica na superfície é uma suposta “treta” entre as duas. E no fim das contas, ambas saem prejudicadas com a cultura do ódio nas redes. Nem a mulher latina nem a mulher trans devem levar o Oscar de Melhor Atriz.
Este é o poder do engajamento do público brasileiro, para o bem ou para o mal. É compreensível. Por termos cultura e arte tão ricas mas ao mesmo tempo tão desvalorizadas, é natural que surja uma empolgação descomunal quando algo nosso tem a possibilidade de um grande reconhecimento internacional (ou melhor, reconhecimento norte-americano, como se este fosse o único que importasse). Por isso não é de se estranhar que o público brasileiro tenha enchido as redes sociais da Academia desde que Ainda Estou Aqui começou a ter destaque internacional, nem que tenha tecido diversas críticas a Emilia Pérez após o filme francês despontar como favorito.
Contudo, o volume e o peso dos comentários negativos acabaram mais atrapalhando do que ajudando. Ainda Estou Aqui já não tinha muitas chances como Melhor Filme — não se iludam com o que ocorreu com Parasita, como já foi dito antes, o Oscar é muito mais marketing do que merecimento e, embora o filme de Bong Joon-ho merecesse a estatueta de Melhor Filme, este e seus diversos prêmios também foram uma estratégia muito bem calculada diante da crescente popularidade de produtos artísticos sul-coreanos no ocidente.
Só o fato de Walter Salles não estar indicado em Melhor Direção já aponta para a dificuldade de vitória. Nos últimos 25 anos, apenas nove dos vencedores de Melhor Filme não tiveram seus diretores premiados. Destes, somente três (Argo, Greenbook e No Ritmo do Coração) não estavam indicados a Melhor Direção.

Talvez uma contenção de danos ainda seja possível para o prêmio de Melhor Atriz. Mas a categoria de Melhor Filme Estrangeiro é o que podemos esperar dentro da realidade e de uma suposta queda na popularidade de Emilia Pérez entre os votantes da Academia — atenção para Flow e A Semente do Fruto Sagrado, que também são fortes concorrentes, embora não tenham ganhado indicações a Melhor Filme.
Porém, é importante deixar claro, mais uma vez, que o reconhecimento do Oscar, da Academia, dos Estados Unidos, não é tudo. Ainda Estou Aqui tem sido aclamado mundo afora e conquistou públicos de diversas nacionalidades por sua história potente, contada com tanta sensibilidade, sem se tornar um melodrama. Uma premiação a mais ou a menos não muda o que este filme faz pelo cinema nacional e pela História do Brasil.
Precisamos parar de nos importar tanto com a opinião dos gringos como se eles se importassem com a nossa e parar de definir o valor da nossa arte pelo reconhecimento que vem de fora. Claro que vamos torcer, claro que vamos nos empolgar, claro que vamos exaltar, claro que queremos ver o Brasil mais presente no cenário cultural internacional, seja no cinema, na música, na TV etc. Mas como bem disse Fernanda Torres, “eu tenho pena” de quem não conhece ou não se permite conhecer a grandeza e a riqueza da arte e cultura brasileiras. Na verdade, quem perde são eles, não nós.
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