O Auto da Compadecida 2 é bom, mas precisava mesmo?
As novas aventuras de Chicó e João Grilo chegam aos cinemas brasileiros em 25 de dezembro
Que O Auto da Compadecida é um grande clássico e um dos melhores produtos audiovisuais já produzidos no Brasil, não há dúvidas. A obra baseada no texto primoroso de Ariano Suassuna conquistou um espaço de destaque no cinema nacional e nos corações de muitos brasileiros. Dessa forma, o Auto da Compadecida 2 carrega consigo o peso de um legado quase que irretocável e muito difícil de corresponder. Não que uma continuação tenha que, necessariamente, atingir ou superar o nível da produção anterior, mas no mínimo ela precisa demonstrar sua necessidade de existir e fazer jus ao nome que carrega, especialmente quando se passam mais de duas décadas entre uma produção e outra.
Nesse sentido, O Auto da Compadecida 2 começa bem, reinserindo o espectador naquele universo aos poucos, fazendo ótimo uso tanto do cenário construído para uma nova visão de Taperoá quanto do texto poético e dinâmico que marcou o primeiro filme. Mesmo com um início promissor, contudo, o longa dirigido por Guel Arraes e Flávia Lacerda se perde em muitos momentos e acaba caindo na armadilha da previsibilidade ao recorrer excessivamente à nostalgia, sem investir em um bom arcabouço para elevar a trama principal — o que, diga-se de passagem, é um dos grandes trunfos da obra de 2000.
Contextualizando, após passar por um julgamento divino que lhe devolveu a vida, João Grilo (Matheus Nachtergaele) volta para uma Taperoá abatida pela seca, passados 20 anos do ocorrido. Lá ele encontra seu velho amigo Chicó (Selton Mello), que agora ganha a vida vendendo santinhos esculpidos e contando a história do milagre da ressurreição de João Grilo para turistas, o que acaba conferindo uma imagem de celebridade/heroi/santo para o personagem de Nachtergaele.
A volta de João Grilo abala as estruturas de Taperoá, uma vez que, por conta de sua popularidade, ele se vê no centro de uma disputa eleitoral entre o Coronel Ernani (Humberto Martins) e Arlindo (Eduardo Sterblitch), dono de uma loja de eletroeletrônicos e também da única rádio da cidade. Em meio às eleições para prefeito, João Grilo e Chicó se unem mais uma vez e utilizam sua esperteza característica para lidar com a tensão política.
Com esta guia narrativa, a trama de O Auto da Compadecida 2 tenta retomar a essência de Ariano Suassuna ao mesmo tempo em que busca atualizar os temas abordados, provocando uma discussão mais contemporânea, ainda que não muito aprofundada, sobre política, fake news e o poder da grande mídia.
Matheus Nachtergaele e Selton Mello seguem sendo o ponto mais alto do filme, com atuações impecáveis. Na A-list de atores nacionais, as performances de ambos são o que dão vida e corpo para O Auto da Compadecida 2.
A interação entre João Grilo e Chicó é o que sustenta a trama, ancorando-se na nostalgia representada pelo linguajar, pelo figurino e pelo gestual, que provocam no espectador o reconhecimento imediato do caricatural que marcou o primeiro longa. Transitando perfeitamente entre o humor e o drama, a dupla (com a ajuda do roteiro de Guel Arraes, Jorge Furtado, João Falcão e Adriana Falcão) conseguiu retomar com maestria uma das características que mais conquistou público no ano 2000: os diálogos dinâmicos, com piadas sagazes e um quê de sarcasmo, bastante fiel ao estilo de Suassuna.
Além dos protagonistas, O Auto da Compadecida 2 conta com um elenco espetacular, com destaque para Luís Miranda, que vive o carioca Antônio do Amor, um trapaceiro e amigo de João Grilo que ajuda o personagem principal em suas artimanhas. Humberto Martins e Eduardo Sterblitch também entregam performances icônicas e Taís Araújo consegue preencher com destreza o papel que já foi de Fernanda Montenegro. O elenco também traz Fabíula Nascimento como Clarabela, filha do Coronel Ernani que tem um breve envolvimento com Chicó, e conta com o retorno de Virgínia Cavendish como Rosinha e de Enrique Díaz como o cangaceiro Joaquim Brejeiro.
Apesar das excelentes atuações, isso não foi o suficiente para fazer o público “engatar” de fato na trama, tampouco para elevar a história ao patamar que O Auto da Compadecida merece. Nesse sentido, a comparação com o primeiro filme é inevitável. No primeiro longa, as subtramas funcionam e servem de base para a construção e desenvolvimento da história principal. É interessante ver os personagens secundários em cena, entrelaçando-se de uma forma coesa e equilibrada com o enredo, o que dá ainda mais personalidade para a obra.
Já na sequência, as tramas secundárias perdem um pouco da clareza e propósito, chegando a prejudicar o ritmo do longa e não conseguindo “se encontrar” no filme. Por serem extremamente dependentes da trama principal, que por si só segura o filme nas costas, questiona-se até que ponto alguns personagens secundários são de fato necessários para a narrativa.
Outro ponto que chama atenção, podendo ser tanto positivo quanto negativo, são os cenários construídos em estúdio e cenas feitas com o auxílio de CGI. A escolha traz um pouco mais de modernidade à produção, possibilitando um clima mais lúdico e teatral, que demarca muito bem a fronteira entre o realismo e a fantasia, ao mesmo tempo em que se distancia da obra original. O distanciamento tem sua validade para a sequência, considerando que, especialmente no terceiro ato, a história se ancora quase que totalmente em sua antecessora e torna-se completamente previsível, fazendo-se necessário algum ponto em que O Auto da Compadecida 2 possa se refugiar e escapar do rótulo da mera “imitação”.
Por outro lado, esse distanciamento pode ser tanto ao ponto de desconectar o espectador daquele universo e prejudicar a imersão, principalmente em comparação com o primeiro filme, em que tudo parecia mais “palpável”. Além disso, a fotografia de Gustavo Hadba acerta na construção dessa atmosfera lúdica, mas reforça a falta de naturalidade e extrema associação do sertão apenas com a pobreza.
Ainda sobre aspectos técnicos, o áudio apresenta algumas falhas notáveis. Assim como muitas produções audiovisuais, O Auto da Compadecida 2 recorreu ao procedimento chamado ADR (Automated Dialogue Replacement), que busca corrigir problemas na captação de áudio e melhorar a qualidade das falas por meio de dublagens feitas após as filmagens. Contudo, o encaixe entre as cenas e as vozes nem sempre funcionou, deixando escapar uma certa artificialidade em alguns momentos.
Em conclusão, O Auto da Compadecida 2 está bem longe de alcançar o patamar do primeiro filme, mas acerta ao resgatar a comicidade e trabalha muito bem o apego do público com os protagonistas. É importante ressaltar que a comparação entre as obras é inevitável, não apenas por se tratar da sequência de um clássico nacional, mas também porque a própria trama faz isso, seja por meio de piadas sabiamente inseridas nos diálogos, seja pela escolha narrativa de repetir arcos do primeiro longa.
Com isso, apesar de ser uma trama divertida, falta criatividade, coesão da narrativa e profundidade na discussão dos temas propostos. O excessivo apoio na nostalgia deve ser suficiente para levar o público brasileiro para as salas de cinema, mas faz com que O Auto da Compadecida 2 não consiga justificar sua existência por mérito próprio, levantando um questionamento sobre a necessidade de se mexer em certas histórias.
O Auto da Compadecida 2 chega aos cinemas no dia 25 de dezembro. Confira o trailer:
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