
“The Last of Us – Parte II”: O ódio não será a tua herança | Léo Oliveira
Qualquer um que se aventure a desbravar o vasto universo dos jogos eletrônicos atuais logo vai se deparar com os chamados exclusivos, games feitos unicamente para um console.
Enquanto a Nintendo desponta com suas franquias clássicas “Mario” e “Zelda”, e a Microsoft tenta revitalizar “Halo” e manter o engajamento de “Gears of War”, a Sony parece reinar absoluta em se tratando de exclusivos com maior vulto midiático. Merecem destaque os recentes “Detroit Become Human”, “Death Stranding” e o magnífico “God of War”, premiado como Jogo do Ano em 2018. Mas a franquia que consolidou a excelência dos exclusivos da Sony, sem dúvidas, foi “The Last of Us”.
O primeiro jogo chamou a atenção no seu lançamento, em 2013, por apresentar uma narrativa extremamente bem desenvolvida, com um roteiro denso e personagens complexos, conciliando quase à perfeição o gameplay com a narrativa cinematográfica. A jornada de Joel e Ellie entrou rapidamente para a História do Videogame por conta do envolvimento afetivo que cativou praticamente todo o público que jogou ou acompanhou a trama, arrematando uma louvável coleção de prêmios junto à mídia especializada.
O sucesso absurdo, além de render uma expansão da história na DLC “Left Behind”, suprindo uma lacuna do passado da Ellie, logicamente traria uma sequência para o jogo. E foi então que em 2016 a Naughty Dog anunciou oficialmente o tão aguardado “The Last of Us – Parte II”, que, assim como o primeiro, seria dirigido por Neil Druckmann.
Ao longo dos anos de desenvolvimento, vários trailers foram divulgados, aumentado cada vez mais o hype em torno da obra, que eventualmente foi diluído por conta de adiamentos. Até que chegamos em 2020, o ano de lançamento da segunda parte da franquia de ouro da Sony.
Mas os desenvolvedores não contavam com dois empecilhos: o primeiro deles, por óbvio, a pandemia de COVID-19 que assolou o planeta no primeiro semestre de 2020, e aparenta não dar trégua pelos próximos seis meses; e o segundo foi um infeliz vazamento de trechos do jogo que ocorreu no final de abril de 2020, que incluía cenas de combate que revelaram detalhes das mecânicas de “The Last of Us – Parte II”, e, o mais grave, a liberação de pontos importantes da trama central, contendo cenas chave dos arcos de Ellie e Joel.
Foi a partir desse ponto que “The Last of Us – Parte II” entraria num trágico espiral metalinguístico envolvendo justamente o seu tema central: o ódio. Fato é que desde o segundo trailer, exibido na E3 de 2018, contendo um beijo entre Ellie e seu interesse amoroso, Dina, a obra veio sofrendo ataques preconceituosos na internet, o que infelizmente já era esperado por boa parte da equipe criativa.
Mas, excluindo essa parcela lastimável do público, a imagem da obra continuou imersa em muita expectativa. Até que os vazamentos vieram à tona, o que além de evidenciar falhas na política de trabalho da Naughty Dog – vez que o suposto responsável era um funcionário frustrado com as condições trabalhistas da empresa – começou a dividir a opinião do público com relação às decisões criativas do enredo.
O problema de se julgar uma obra através de spoilers contido em vazamentos – bastante imprecisos, por sinal – é que quem recebe tais informações não está inserido no contexto da obra. Não conhece as motivações dos personagens, os detalhes de cada jornada, a construção dramática de cada momento, e, o mais importante no caso de “The Last of Us – Parte II”, o ponto de vista. O jogo apresenta muitos momentos chocantes, revoltantes até, sempre retratando a violência sem glamour, de forma crua e abrupta, apostando num drama mais realista, ainda que conte com o elemento fantasioso dos infectados.
Mas tudo no roteiro foi pensado para dividir o jogador entre o rancor e o perdão, entre o impulso do ódio e a mansidão do afeto. Diferentemente do primeiro, essa sequência não foi planejada como uma obra de uma perspectiva apenas, apostando numa dinâmica de empatia e reflexão, onde mais do que nunca os heróis se confundem com vilões, e protagonistas de uma história se tornam antagonistas de outra.
Fato é que o jogo, em termos técnicos, atinge um patamar único, talvez o mais alto já alcançado nessa arte até então, com detalhes de polimento que vão continuar impressionando jogadores por muitos anos. Mas é consenso que essa é uma franquia que conquista pela história, e dessa vez o consenso não foi o alvo de Neil Druckmann ao pensar a sequência.
Ellie toma decisões nefastas que colocam o jogador em xeque, Joel precisa arcar com as consequências dos seus atos no primeiro jogo, e até mesmo a antagonista do jogo, Abby, passa por uma jornada imersiva e intensa, com vários paralelos com o arco da Ellie, que, a grosso modo, assume o protagonismo. O debate que a obra pretendia não é fácil, girando em torno dos limites do ódio, da vingança, da compaixão e da redenção. O problema é quando o público se recusa a embarcar na experiência de “The Last of Us”.
“The Last of Us – Parte II” foi recebido por boa parte do público com o mesmo ódio que tenta criticar em sua mensagem central. Ao invés de promover o diálogo sobre os pontos chave da trama, as reflexões sobre a natureza humana em sua essência, o imediatismo de informações na internet atual desvirtuou toda a proposta dos artistas por trás do jogo, gerando um cenário de amor exacerbado ou ódio cego e infundado, com vários jogadores se recusando a completar a campanha por conta de eventos do início do jogo. Ironicamente – e tragicamente – uma obra com uma mensagem marcante e atual sobre como devemos agir contra o ódio que é semeado acabou se afundando nas brigas apressadas e imaturas que dominam a cultura dos games atualmente.
É claro que o jogo não é perfeito, como nenhuma obra o é. O roteiro tem várias inconsistências no seu desenvolvimento, com decisões criativas controversas que poderiam – e deveriam – gerar mais diálogo entre os jogadores. Mas no todo, absorvendo a mensagem final, compreendendo toda a jornada, é quase impossível não sair de “The Last of Us – Parte II” impactado, com um misto de revolta, tristeza, arrependimento e até uma felicidade melancólica.
Porém, toda a proposta da experiência do jogo parecia ter se perdido em meio ao ódio que há muito domina boa parte do público gamer. Uma comunidade que insiste em enraizar preconceitos, posturas tóxicas, comportamentos com ares de arrogância e o velho imediatismo de imposição de opiniões. Felizmente a mais nova obra-prima da Naughty Dog parece estar, aos poucos, mudando as posturas de seus jogadores com o passar do tempo. O tempo necessário para absorver o impacto da história. O tempo que precisamos ter para nos despedir devidamente de Ellie e Joel.
Se o primeiro jogo era uma mensagem forte sobre como recuperar o amor e se livrar do ódio, essa brilhante sequência é um ensaio sobre como temos potencial para usar do ódio para manter o amor que conquistamos no limite da humanidade. Uma franquia que infelizmente se torna cada vez mais atual… mas que ao menos demonstra com clareza a complexidade das emoções humanas, esperando que o que vemos dentro dessas quase 30 horas de uma sofrida jornada não se torne, aqui fora, a realidade dos últimos de nós.
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